Publicado
por Sergio_Almeida às 15:36 Tags: Entrevista
Sérgio
Almeida
O receio do desconhecido e a onipresença
da morte confrontam-se no novo livro de Mário de Carvalho, O Varandim seguido
de Ocaso em Carvangel, um conjunto de duas novelas recentemente publicadas pela
Porto Editora. Com a habitual agudeza crítica, o escritor denuncia o que
considera ser a tentativa de imbecilização em curso por parte do poder
dominante, apostado em trocar a cidadania pelo consumo desenfreado.
A existir um fio condutor entre ambas as
histórias, não será a incapacidade dos indivíduos para enfrentar forças
superiores?
Há
vários pontos de contacto. A ambiência (algures na Europa central, em meados do
século XIX) e uma certa presença da morte, representada no fascínio pelo
sofrimento do outro. Na primeira novela, ninguém quer faltar a uma execução. Os
fatos são ficcionados mas esse gosto pela morte tem abundantes exemplos pela
História fora, incluindo em Portugal.
O espetáculo da crueldade ainda é uma
das poucas indústrias lucrativas que temos?
O
apelo aos instintos mais primários perde-se no tempo. Basta pensar nos romanos
e nos horrorosos combates dos gladiadores ou nas execuções públicas na Idade
Média. Ainda no século XVIII, os aristocratas iam ver os loucos aos asilos e
prisões por puro divertimento.
Apesar de tudo, não estaremos, hoje,
mais distantes da barbárie?
Embora
haja uma pulsão em nós que procura capturar o que há de mais básico, acredito
que estamos melhores do que na Idade Média.
Qual o equivalente, na sociedade atual,
dos combates dos gladiadores e das execuções públicas?
Há
uma diferença que temos que fazer entre a cultura de massas e a popular. Quanto
à segunda, tenho tudo a favor. Fui formado nela. A cultura que as televisões,
por seu turno, promovem é a de massas, que apela ao rebaixamento.
A espera por algo que nunca chega, narrada na segunda novela, não tem o seu quê de sebastiânico?
Interessou-me
mais a condição humana, no sentido em que almejamos algo que é superior a nós.
Estamos confrontados com o mundo que nos transcende, cujas leis procuramos
decifrar. Mas a cada página que descodificamos, sabemos que se seguem 20 de que
desconhecemos o conteúdo.
Ao analisar mais a condição humana do
que a especificidade portuguesa, poder-se-á dizer que esta é uma obra mais
apátrida?
Talvez,
exceto num sentido: a linguagem com que é escrito o livro não é a do Português
com 2200 palavras que nos querem impingir.
Como é que alguém com uma relação tão
próxima com a língua portuguesa vê o seu crescente empobrecimento?
A
situação, já de si preocupante, tende a agravar-se. O que se pretende é a
formação de consumidores e não de cidadãos. Na ótica do ensino de hoje, não é
preciso decifrar metáforas ou conhecer um vocabulário alargado. Basta saber ler
um anúncio. É isso que pretendem as pessoas ligadas às negociatas do
capitalismo. Querem massas amorfas de consumidores e contribuintes para
venderem os seus produtos.
As manifestações do dia 15 não
significam também um grito de revolta face a essas situações?
Tenho
esperança de que estas imensas manifestações possam significar o rebate das
pessoas em relação à maneira como têm sido manipuladas. Não é por acaso que,
nos protestos, tem aparecido uma bela canção do Fernando Lopes Graça intitulada
Acordai. Poderia ser quase o hino desta revolta. É tempo de deixarmos de ser
tratados como os cidadãos passivos em que querem transformar-nos, aliás,
consumidores passivos.
As convenções literárias dizem-lhe
pouco?
Tenho
alguma desconfiança em relação aos escritores com uma só voz, porque no fim da
vida eternizam-se numa lenga-lenga. Sou muito curioso e procuro seguir várias
pistas.
Tem um gosto especial em surpreender os
leitores, ao variar de género praticamente em cada livro?
Os
meus leitores sabem que tenho um espírito irrequieto e, com certeza, já
adivinham que a próxima publicação tem pouco que ver com a presente.
É
uma das exceções à tese de que os escritores escrevem sempre o mesmo livro.
Não,
não sou. Se reparar bem, a obra – ainda em curso – forma um corpus que, no seu
conjunto, é coeso.
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