Wander
Lourenço
Em
curso proposto por uma disciplina eletiva acerca da obra de João Guimarães
Rosa, com o título Réquiem para Diadorim – dois dedos de prosa-poética sobre o
'Grande sertão: Veredas', ministrado na Universidade Federal Fluminense, um
estudante de letras perguntou-me a respeito da utilidade prática da literatura
na gênese de uma sociedade contemporânea pautada pelos dogmas e preceitos da
pós-modernidade deste século 21. Após breve reflexão, respondi-lhe que a sua
indagação exigiria apreciações referentes ao conceito de ficção, porque,
obviamente, o objeto de questionamento não se ajustava a se descobrir a
importância de uma literatura de origem bíblica ou científica. Logo a seguir,
expliquei-lhe que compreendia que a sua aguçada curiosidade se referia à serventia
do registro literário na formação social e humana de um país periférico,
subdesenvolvido e semi-alfabetizado. Em suma, a emblemática questão girava em
torno do que se resume ao título da crônica – Afinal, para que serve a
literatura?
O
preâmbulo posto no primeiro parágrafo obrigou-me a discorrer sobre o fato de
que a ficção propriamente dita, conquanto se bifurque por outros mecanismos de
representação artística quando se faz notar pela escritura, difundira-se por
gêneros literários em epopéias, lendas, fábulas, diálogos, apólogos ou
parábolas. Destarte, a estruturação do discurso se inscreve para categorizar
uma espécie de estética da invenção, que se interpõe por regras e códigos
gramaticais, estrofes e parágrafos, a servir de parâmetro para a construção de
um registro identificado por literário ou ficcional. Dito isto, enfatizei que,
a partir deste raciocínio que não se restringe ao âmbito estrutural, a função
da literatura não pode ser avaliada por critérios estatísticos que delimitam o
número de indivíduos alfabetizados de uma determinada época ou nação, pois que,
ainda que apto a distinguir os códigos linguísticos, através de frases,
períodos e orações, o ser humano pode até ser considerado iletrado por não
constituir em si uma vivência intelectual que o habilite à condição de
leitor.
Ao
habilitar-se à leitura pela reprodução ficcional, não obstante, a experiência
pós-moderna se aproximaria de um esboço construído pela narrativa ou poema,
mediante traço rítmico ou verbal que se alia ao discurso para se constituir em
mensagem perceptiva ao paladar, tato, audição, olfato e visão. Em verdade, o
processo de recepção do público leitor ou expectador a partir de um verso,
película, sinfonia ou pintura se assemelha ao que se contempla pelo viés da
pluralidade inventiva que preenche a necessidade de ficção para além do sonho,
por intermédio de um estribilho, cena, concerto ou paisagem. A tradição literária, especificamente, se
perfaz por símbolos, signos, alegorias e metáforas, que coincidem com o
enquadramento social propositado pela narração (romance, conto, novela etc), ao
mesmo tempo em que a tessitura poética emoldura a abstração de um episódio
histórico ou de um drama particular. Neste sentido, vide a irônica reflexão de
Carlos Drummond de Andrade referente à subjetividade da essência humana:
"Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima,
não uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração”.
O
registro ficcional ao discorrer sobre enclaves diplomáticos entre nações,
conflitos étnico-religiosos e suspiros de saudade, em harmonia com os métodos
de engenho apolíneos ou dionisíacos, delimitando-se que a literatura só pode
ser avaliada por um mecanismo de utilidade prática para a sociedade
contemporânea, quando se afeiçoa ao espírito dos leitores a lucidez do
sensorial e do implícito para desatar os nós da mais árdua sobrevivência em
preto e branco; quando desperta ao coração a sensibilidade de decifrar enigmas
ou mistérios envoltos por oceanos, florestas e labirintos íntimos desbravados
por heróis de carne e osso; e, quando, enfim, instiga o pensamento ao singelo
desabrochar de uma flor-consciência, que se instaura no jardim de um Ser de luz
a dialogar com o mais translúcido e absurdo Infinito, com seus mágicos arranjos
de serafim para gorjeios de pássaros silvestres, orquestrados por peripécias de
borboletas multicolores ávidas pelos arroubos de quimeras e utopias,
inalcançáveis ante a efêmera cronologia de realizações e descobertas humanas.
Para
isto talvez sirva a literatura ou para nada...
*Wander
Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor
universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e
‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
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