Wander
Lourenço*
Em
certa ocasião, numa conferência para mestrandos do curso de letras da
Universidade Federal de Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul, a convite do
pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, professor doutor Carlos Baumgarten,
quase que irresponsavelmente, observei aos ouvintes que os homens que lidassem
com a literatura seriam mais longevos do que aquelas pessoas que não estavam
habituadas ao convívio com as obras de ficção, suas tramas e fascínios. Logo um
dos pesquisadores da instituição interpelou-me a indagar se porventura o
palestrante poderia indicar a fonte de pesquisa, pareceres médicos, referência
bibliográfica de âmbito científico, dados estatísticos etc, que comprovassem
tal estapafúrdia e grotesca afirmação que, com toda sinceridade acadêmica, lhe
parecera no mínimo estouvada ao atribuir a extensão do percurso da vida humana
ao trato com os registros literários.
A
exigência tão afeita à obrigatoriedade de comprovação universitária do jovem
historiador que, salvo engano, se debruçara sobre a Crônica da casa
assassinada, de Lucio Cardoso, para sua dissertação stricto senso –, obrigou-me
a explicar-lhe que as minhas palavras não se referiam ao tempo cronológico dos
leitores ou não leitores que, com toda a razão, facilmente poderia ser
mensurado por uma data de aniversário ou mesmo por uma antiquada ampulheta
medieval. De imediato, disse-lhe que, ao abrir mão dos utensílios que
demarcavam as horas com a poesia dos grãos de areia ou pássaro-cuco, referia-me
ao tempo não contabilizado pelos ponteiros de um relógio ou pelo calendário
pregado na parede de uma memória a lembrar-me da urgência cronológica de uma
partida chegante a acenar-me com os seus mistérios de eternidade.
Afirmei-lhe
que, quiçá levianamente, sentenciara que os seres humanos afeitos à leitura
qual Dom Quixote sobreviveriam mais do que as espécies brutalizadas
intelectualmente que não se humanizavam pelos livros, sem singularidades de
gênero, número ou grau. Todavia, eis o mea-culpa de um visionário versado em
quimeras, reportara-me ao fato de que quem se deixa envolver com a escrita de
um poema, romance, crônica ou conto de gente ou fada adquiriria o dom de
embalsamar a idéia de cronologia, porque se embrenhava por inúmeras descobertas
que o impeliam a outras épocas por intermédio de veredas íntimas aventadas pela
ilusão de arremedar um Deus atarefado com os enredos e ações da humanidade.
Afiancei-lhe
que quem se humanizasse pelas obras de ficção houvera de habituar-se à
intensidade invisível de outras existências que, sutilmente, se intercalariam
por sobre a imaginação de cada leitor apto a desvendar os nós cegos e
imemoriais com a maestria dos marinheiros de Victor Hugo, Charles Dickens e
Jorge Amado. Decerto, aqueles que se enfeitiçassem com os cânticos das sereias
de Ulisses ou com os ludíbrios dos duendes da floresta encantada de Shakespeare
ou Valery, como num toque de mágica, a vida se multiplicava a impulsionar ao
devaneio que ultrapassaria o antes e o depois da essência pautada por bálsamos
de invenção.
Por
este raciocínio, avalizei que aquelas criaturas que se permitiriam abalroar-se
diante de uma árdua e hermética narrativa de Kafka, Borges, Woolf, Rosa ou
Lispector viverão mais do que os outros indivíduos comuns, que não se
habilitaram ao convívio com as nódoas e borrões da arte literária. Destarte,
ponderei são e convicto que poder-se-ia assegurar sem receio do ridículo que
estes entes iluminados pela vara de condão da escrita sobreviverão mais do que
aqueles que não consentiram se desembaraçar das teias da sobrevivência por uma
lógica atemporal, que deságua no abismo lúdico e palpável da experiência que
brota a se embriagar pela alucinação mais absurda de um traço lírico ou
descritivo.
Enfim,
o fascínio da literatura se oculta ao desnudar-se diante da vida à imagem e
semelhança de um esboço da condição humana, que se desintegra no jardim da
consciência de um criador de ilusão que construímos à proporção que o
reinventamos a saciar-nos a sede que só se mata com o potável da voz que narra
o invento de barro ou da lida que fabrica por método artesanal o eu-lírico a se
esgoelar, silenciosamente, dentro nós.
*
Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor
universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e
‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
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